Aquele beijo num dia de chuva

[vc_row][vc_column][vc_column_text]

Em meados dos anos 90, quando vivia na rua Siqueira Campos, em Sucupira – Jaboatão dos Guararapes – uma das cenas mais bonitas que presenciei no início de minha adolescência, durou cerca de 1 minuto. Era um beijo. Porém, não um beijo em que eu fizesse parte. Naquele momento, era eu um mero espectador.

Não recordo para onde ia, era cedo da manhã – o céu estava nublado; o chão da rua e das escadarias, encharcados. Caminhei tranquilamente de cabeça baixa, beirando a calçada curta do extenso muro da garagem de uma empresa de transporte público de Recife-PE. Percebi a presença de um casal emaranhando-se entre o muro rosa de uma casa e a parede branca de uma escola. Ao fundo, a longa escadaria cinzenta de onde vieram para selar aquele encontro às escondidas. Porém, nada reservado.

Não era algo comum de se ver na época – pelo menos para mim: duas moças, ainda na primavera da juventude – envolvidas num beijo claramente apaixonado, cujos olhos fechavam-se para o mundo.

Parei diante daquela cena, emudecido. Não queria que minha presença estragasse o momento. Sorrateiramente, encostei-me no muro para observar e  subitamente começou a chover… Aquele beijo era tão intenso, que a chuva de pingos grosseiros era suficiente para ensopar alguém rapidamente. O telhado em alumínio de uma garagem próxima, amplificava o som da chuva e, mesmo assim, tudo era ignorado – o beijo não cessava. Talvez fosse um aviso de que era o momento de parar. Porém, a chuva tornava aquela cena ainda mais interessante.

Uma delas tinha os cabelos sobre os ombros, alguns fios dourados e delicados – pele alva como leite. A outra, morena de pele clara, cabelos crespos e castanhos, um pouco mais alta. Ambas, rapidamente ficaram com as madeixas e ombros molhados. A de cabelos claros, alisava o rosto da outra enquanto se beijavam. E eu? Bom, continuava ali na mesma posição, de braços cruzados a observar aquela cena cinematográfica. E claro, encharcado pela chuva, tanto quanto elas. Sem qualquer manifestação preconceituosa na mente. Aliás, tudo à volta parecia desmanchar-se em aquarela, apenas elas permaneciam nítidas, à cores e intensas.

Contudo, o preconceito – não podendo manifestar-se em mim. Veio como que à cavalo… Se fez num grupo de meninos que surgiam descalços à curva da rua.  Não avisei. Queria que aquela cena durasse um pouco mais. Passando por elas, manifestaram a essência do preconceito: gritaram, xingaram, apontaram-nas. As duas, assustadas, pareiam libertar-se de um transe. Saíram do paraíso, de volta ao mundo real que nada perdoa e tudo critica. Correram escadaria acima, enquanto eu pedia para que parassem com aquilo e as deixassem ir.

Foram todos embora, inclusive eu. Continuei meu trajeto. Porém, guardei aquela cena em minha mente. Foi o beijo mais bonito que já vi e também o primeiro que havia presenciado entre duas pessoas do mesmo sexo. Nele vi o sentimento que em tantos outros vistos posteriormente, vida adentro, jamais pude presenciar entre outras pessoas. A maioria desses outros transparecia puro desejo, nada além disso.

É incrível como aquele beijo com de cerca de 1 minuto conseguiu fixar-se em minhas lembranças, viajar ao longo dos anos em meu baú de recordações e transformar-se por inteiro, nessa história curta de paixão juvenil e preconceito intrincado que perduram noutras “escadarias adentro” e que agora compartilho com você.

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Compartilhe:
Traduzir »