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Há muito tempo, em Buíque, houve um sertanejo cuja incredulidade nas coisas divinas era tamanha que vivia a fazer piadas e desafiar a fé de outrem sempre que se falasse algo referente a Deus. Bastava até relampear o céu e “Quinca” – como era chamado, fazia pontaria com seu bacamarte em direção ao céu e atirava, dizendo em seguida:
– Tiro de lá, pipoco de cá. Comigo é no duelo! E um dia furo as tripas de um anjo a voar pelo espaço.
Sua esposa lamentava a estupidez de seu amado e aos prantos, aconselhava-o:
– Bate com a mão na boca, Quinca… Que o poder de lá de cima é bem maior que o teu!
Gargalhadas ecoavam no terreiro e se dissipavam com a ventania. Quinca não poupava a chance de soltar mais uma blasfêmia. Afirmando que a falta de resposta ao bacamarte figurava a fraqueza de quem governa às alturas. De sua boca eram proferidas as piores barbaridades e todos o conhecia pela podridão de suas palavras. Muitos, ao vê-lo passar, repetiam o sinal da cruz como quem acabara de ver o próprio demônio. Bastava cruzarem seu caminho, vê-lo sair de casa ou surgindo no meio do mato.
O maior desejo de Zefinha, sua mulher – era ver seu marido arrepender-se das besteiras que falava antes que sofresse algum castigo ou fosse embora desse mundo sem chance de salvação.
Certo dia, em mais uma tentativa de convencê-lo, narrou pacientemente uma história…
A história da carne assada
– Marido, toma cuidado com o que fala. Não brinca com as coisas de Deus. Ele não mede força com ninguém. Mas, um dia acaba revelando nossas fraquezas. A exemplo do que aconteceu com o finado Vitorino. – Dizia enquanto o teimoso cingido de arrogância fingia ignorar suas palavras.
– Vitorino, desafiando a Deus, resolveu comer carne no dia de Sexta-feira da Paixão. Assim fez propositalmente. Torrou a carne e a pôs no prato. Na primeira talhada, espirrou sangue para tudo quanto é lado e aparecera ali todo tipo de bicheira. A cena era tão feia que Vitorino pôs-se a vomitar e saiu em disparada para confessar-se e pedir perdão ao Senhor. Uma angústia tomou conta dele tal forma que batia com uma pedra contra o próprio peito.
Quinca olhou para Zefinha e disse: boa ideia! Na primeira sexta-feira que se diz ser da Paixão, vou comer um “bifezinho”. Mas antes quero ver o sangue da carne, e a levarei ao fogo, deixando-a bem torradinha. Se dela espirrar bicho vivo aí sim, me curvo diante de Deus. Mulher… Quando é que chega esse dia? – Breve! – responde.
É chegada a Sexta-feira da Paixão
Chegado o dia, ao amanhecer – Quinca declarou: Eu mesmo quero matar um garrote e ver o sangue descer feito riacho em despenhadeiro. Me dá o facão aí!
Zefinha deu-lhe o facão e o aconselhou: Não brinca com os poderes de Deus, Quinca! Com Deus não se brinca, homem! – e o incrédulo saiu a mostrar os dentes. Deu as costas e falou em voz alta que temores e assombrações eram coisa de mulher.
Quinca, repleto de pura soberba, dirigiu-se até o cercado e chamou seu filho para ajuda-lo a abater o animal. No caminho foi pensando: Corto a carne e vendo o bicho é no sábado de aleluia! Tal e qual! Aleluia! É carne no prato e farinha na cuia!
Escolheu o bezerro e o levou para debaixo de um pé de jurema-preta. Todo material necessário para aparar o sangue estava pronto. Munido com uma faca amolada, uma vareta para espichar o couro e já com o alecrim seco estalando no fogo, pediu ao filho para que segurasse o bicho pelo cabresto e com um só golpe, encravou a faca na nuca do animal.
– Melancia é até mais dura pra faca, Zeca! – afirmou.
O bezerro caiu no chão a agonizar e prontamente, Quinca lançou a faca contra o pescoço do animal. Observando o sangue escorrer enquanto as pernas se debatiam e os olhos brancos se reviravam. Olhou para o filho e disse:
– Está se despedindo do mundo. Olha a língua dele, está gordo. A carne deve estar um favo de mel.
Quinca e o filho esfolam o bicho
Três moscas rondavam o corpo. Quinca, praguejando – sacudiu o braço para afastá-las. A primeira gamela encheu de sangue, em seguida o aguidal. Porém, o sangue continuava a jorrar escuro e pegajoso que só a fruta do murici. Ao que o filho comentou:
– Muito sangue, vida comprida.
– Mas não na ponta da faca, completou Quinca passando o dedo polegar num dos olhos do boi para sentir seus sinais vitais.
Após estancar o sangue, ordenou: Zeca, esfole pelos pés que depois penduramos o bicho.
O filho começou pelo mocotó, partindo bem acima dos cascos. Corte fácil como uma navalha em pele fina; riscou a mão do boi de cima para baixo e com o punho ligeiro, empurrou o couro que ia largando da carne. Vendo o fácil manejo do filho, Quinca soltou: Está vendo Zeca, tirar casca de laranja é mais difícil!
Com pouco tempo o boi estava meio esfolado, mostrando as entrâncias das costelas. O odor do sangue começa a incomodar, fazendo-o comentar: Carne morta fede antes de apodrecer.
– É a gordura do entre couro, que é como salmoura coalhada. – respondeu o filho.
Quando o couro já se dobrava pelo chão, apenas a parte do toutiço estava grudada à carne. comentava Quinca: Esse bicho nu é mais feio do que papagaio depenado; e o filho complementou: Se o boi vivo fosse assim, pode crer que seria a marmota mais feia do mundo.
– Com essa aí Zeca, eu acreditaria em Deus: se visse um bicho desse enfiar no mundo assim morto e esfolado. – Finalizou.
Quinca e a marmota mais feia do mundo
Terminadas essas palavras, levantou-se o animal num sopetão, arrastando o couro mole e ensanguentado. Danou-se dar chifradas para cima de Quinca e Zeca. Era de fato, a marmota mais esquisita do mundo. A besta morta, de olhos revirados e vísceras expostas corria manca contra o incrédulo e seu filho. Atrás, uma nuvem de moscas seguiam o animal com um zumbido perturbador. Assustados, correram até o cercado mais próximo, passaram por debaixo de um mourão, que é lugar sagrado entre os antigos e logo o animal esfolado foi ao chão.
Quinca lembrou das coisas que havia dito, ajoelhou-se e pediu perdão a Deus. Daquele dia em diante, prometeu nuca mais fazer pouco caso do Criador.
[/vc_column_text][vc_zigzag color=”mulled_wine”][vc_column_text]Adaptação por Paulo César Barmonte | Fonte: publicação feita em: Jornal de Notícias. JARDIM, Luiz. Milagres e castigos. São Paulo. 18 de dez de 1947[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]
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